* Por Adriana Amorim /
Ando com dores de estar viva. Aquela contradição contínua de me sentir plena e feliz com tudo o que consegui realizar aliada àquela dor de ver a quantas anda o mundo, a quantas recua nosso Brasil.
Sinto esperança e força quando vejo as lutas dos movimentos sociais e sinto medo e horror quando vejo o avanço do ódio, da intolerância e da burrice.
Sinto coragem e cansaço, força e medo, esperança e terror, mas sempre, sempre, sempre eu sinto amor.
E é o amor, apenas o amor, que me faz levantar e seguir adiante. Amor pelos meus filhos e filhas, paridos ou não por mim; amor pelo que faço; amor pelo que recebi, amor pelo que quero deixar. Amor pelos mestres e mestras que tive, pelos discípulos e discípulas que tenho. Amor pelos que estão ao meu lado; amor pelos que passaram por mim; amor pelos que virão. Amor pelas ideias, músicas, quadros, esculturas, filmes, peças e livros que li, leio e lerei. Amor por compartilhar. Por isso seguimos em cena. Por isso a CazAzul persiste. Por amor.
Porque quando parece que não há mais nada a fazer, é aí que urge que algo seja feito. Assim é e assim foi com o Teatro do Absurdo.

E é Samuel Beckett quem sentencia a humanidade à consciência de sua total incapacidade de seguir a diante com a célebre frase de Esperando Godot: “Nada a fazer...”



Para mostrar ao mundo que não há saída, que nada nos resta, Beckett armou-se com um arsenal de cadernos e canetas e escreveu sobre a dor, sobre o vazio e sobre a incomunicabilidade humana. Reuniu um exército de atores e atrizes, diretores, cenógrafos e figurinista e avançou sobre a desesperança e a tristeza. Chocado, desolado, derrotado pelos efeitos de duas guerras mundiais que pareciam enterrar de vez o sonho iluminista da plenitude, Beckett denunciou a inviabilidade da experiência humana.


No entanto, consciente ou não, sua ação contradizia o que seu discurso pregava...
Sim, há ainda algo a ser feito: ARTE. TEATRO. ENCONTRO.
Dizer a dor, a desesperança e diagnosticar o "Nada a fazer" é em si fazer algo. É um ato. É uma resistência.
Por isso celebramos Beckett e sua ausência física que em dezembro completa três décadas.
Celebramos ele e os demais autores do Teatro do Absurdo porque sabemos que, como nós, esses homens viram o horror emergir, o bem ser acuado, a arte ser amordaçada e a vida, reduzida a pó. Guardadas as devidas proporções de época e local, compreendidas todas as vantagens de homens brancos europeus, héteros, cis, intelectuais terem um privilegiado acesso aos meios de produção e de registro de suas produções, é preciso reconhecer que é no acesso ao que nos foi legado, no aprendizado, no diálogo com o que foi feito antes de nós que encontraremos força para seguirmos lutando.
Sozinhos, sem consciência histórica, isolados, nos tornamos presas fáceis.
Em épocas de absurdos constantes, reais, concretos e simbólicos, materiais e imateriais, vai ser no mínimo provocador dar-se conta de que há mais de 50 anos atrás o mundo parecia tão hoje e hoje parece tão ontem.
Pode ser desafiador descobrir que, em meio ao caos do pós-guerra, frente à aridez da figura humana que emergia daquele desastre, artistas venceram a tristeza, a dor e a desesperança e se puseram a construir, talvez mesmo sem o saber, um repertório que ficaria para servir de memória e inspiração, quando o mundo se perdesse mais uma vez.
Essa hora chegou. Façamos a nossa parte.


Venha. Venha celebrar a eterna resistência pela arte. Venha se fortalecer com seus pares. Venha lutar com a gente. Mas venha! Simplesmente, venha!
Absurdo é seguir sozinho! Absurdo é ficar parado!
